domingo, 6 de março de 2011

EJA e classe multisseriada

EJA - Um assunto complexo. Tenho anos de experiência em sala de aula, mas nunca assumi uma sala com esta faixa etária. Li alguns materiais e aprendi muita coisa interessante. A ausência ou a presença da escolaridade na vida de uma pessoa influencia seus relacionamentos sociais, familiares e profissionais. Não ter tido acesso à escolaridade faz com que o indivíduo seja considerado à margem da sociedade, marginalizado. É vítima de preconceitos, de exclusão. Não ser escolarizado leva a uma baixa qualidade de vida. A família, onde os pais frequentaram a escola, são letrados e esclarecidos, tem um nível de vida muito mais saudável, em todos os aspectos, pois educação é sinônimo de cidadania plena. Observo essa realidade com meus alunos, aqueles que os pais possuem certa instrução, valorizam a escola, participam da vida escolar do filho, interagem. Os outros, porém, têm uma representação ruim da escola. Costumam dizer nas reuniões de pais: "Meu filho, sabendo escrever o nome tá bom, eu só sei isso e ninguém morreu de fome!"
Claro que há exceções.
Podem não ter morrido de fome, mas não vivem, não participam da vida política da cidade, do Estado, do país; reproduzem o que seus pais viveram; não possuem voz ativa, são meros instrumentos nas mãos de quem está no poder, são consumidores de músicas descartáveis, programas televisivos que não acrescentam nada. Discutem calorosamente reality show enquanto o salário perde o valor, para conseguirem uma consulta precisam esperar meses, andam horas em pé em conduções cheias, entre outras coisas.
A alfabetização é o alicerce para a Educação Básica. É deprimente observa o imenso número de analfabetos funcionais. Um dia, em uma agência dos Correios, uma ex aluna da faculdade observou um grupo de adolescentes desesperados porque não entendiam como preencher uma simples ficha. Ela me relatou o fato e, juntas, refletimos sobre o porquê da importância do saber ler. Quem não sabe ler, não consegue participar plenamente do mundo. O mundo é letrado.
Alfabetizo crianças, mas já entendi que alfabetizar adultos é outra história. É outro desafio. Devemos, em primeiro lugar, conhecer profundamente quem aprende: desejos, medos, expectativas, sonhos, interesses.
Lembro-me, quando fazia trabalho voluntário para a "Alfabetização Solidária" (capacitava líderes de comunidades indígenas) e, após explicar as leituras que fazemos mesmo sem saber ler (rótulos, placas etc), que devemos valorizar a realidade do aluno, que devemos criar um ambiente alfabetizador escrevendo o nome de tudo que há na sala de aula, uma índia de Santa Isabel do Rio Negro (Amazonas), levantou a mão e disse que tinha uma dúvida. Prontamente pedi a ela que falasse. Fui pega de surpresa com sua pergunta: "Pró, me diga, como vou escrever porta na porta, lousa na lousa, janela na janela, se dou aula embaixo de uma árvore? Lá não tem parede, não..."
Achei aquilo lindo. Que vontade de ajudar o próximo! Que vontade de aprender! Levantei, com ela e os outros índios, palavras comuns do dia a dia, nomes de plantas, animais, árvores... E, ao final, quem aprendeu fui eu.
No último dia da capacitação, o líder me chamou e sua companheira me disse que quando saíram do Amazonas trouxeram um colar feito por eles para darem a alguém especial e um outro "tesouro": uma pasta feita de papel cartão com produções escritas feitas pelos seus alunos. Com a promessa de entregarem este presente a pessoa que mais marcasse este encontro, a pessoa que mais ensinasse como aprender a ler. Sim, eu ganhei este presente de valor incalculável!
A alfabetização de adultos deveria contribuir para a mudança da realidade social, de verdade. Mas, conversando com amigos que trabalham há muito tempo com EJA, percebo que ainda há resistência no desenvolvimento de uma educação onde eles, alunos, são sujeitos do processo educativo. Eles, ainda querem, apenas lição na lousa. Não entendem que quantidade não é qualidade. Algo parecido com o que acontece nas aulas de filosofia. A EJA precisa conscientizar seus alunos sobre a organização do nosso país, do mundo. Esclarecer sobre seus direitos básicos, seu direito de ter dignidade, segurança e felicidade. Desenvolver suas capacidades interpessoais, torná-los mais solidários, leitores fluentes, pessoas que valorizam suas próprias histórias de vida, sua cultura popular, mas ao mesmo tempo com um desejo enorme de aprender.E para que isso aconteça, os professores devem ser capacitados, trocarem experiências, com a finalidade de desenvolverem aulas envolventes, dinâmicas, dando sentido aos conteúdos, promovendo a participação de todos.
Os alunos da EJA, geralmente os mais velhos, sentem-se ainda mais deslocados. Em nossa sociedade consumista e descartável, eles, os idosos, acabam sendo, também, descartados.
Assim que encerrei os escritos acima, assistindo o noticiário, a notícia não poderia ser mais pertinente: Resultado da pesquisa sobre o impacto da leitura sobre o cérebro. O pedreiro entrevistado, que decidiu se alfabetizar e fez parte da pesquisa, disse "se sentir uma criança". A pesquisa comprovou que a área do cérebro ativada na aprendizagem da leitura em uma criança de seis anos é a mesma no adulto. Ou seja, todos podem aprender a ler. Dizer que o aluno mais velho tem mais dificuldade para aprender, cientificamente, não é uma verdade.
Falando de EJA, não sei por quê, mas lembrei-me de uma escola em minha cidade que visitei faz alguns anos. Ficava (ou fica) perto do pedágio e era multisseriada. Acompanhei o trabalho da professora e vi que ela conseguia fazer um bom trabalho. Além da multesseriação, ela tinha alunos bolivianos (em todas as séries), eram irmãos e como não falavam português ficavam sempre juntinhos. Aproximei-me da mais nova, que estava matriculada no ensino infantil, era linda.
No final do período, a mãe das crianças bolivianas, trouxe para a escola uma cobra em um líquido. Como foi difícil entender a mãe querendo dizer qual foi seu objetivo. E para ela explicar que aquele líquido era aguardente. Só entendi quando ela mostrou a boca aberta e disse que a cobra estava imersa no líquido que eles bebem em casa...
Os professores que assumem essas classes devem enfrentar um enorme desafio e devem criar atividades que envolvam toda a classe, formar grupos produtivos, misturar níveis de aprendizagens diferentes, deixar crianças do mesmo nível de conhecimento juntas... Enfim, ser criativo.
Nossa como professor sofre!

3 comentários:

  1. Temos que abandonar nossa postura de professores diante das pessoas e entender que estamos todos envolvidos num mesmo aprendizado: O de conviver respeitando as diversidades e possibilitando igualdade. Impingir as normas cultas (do mundo civilizado) é por vezes estabelecer modelos. Tudo é muito confuso quando se aprende a pensar que o conhecimento pode ser um instrumento libertador, mas acabamos, como professores facilitando o acesso de quem pretende apenas unificar o pensamento de forma disciplinar. Gostaria de aprender Tupi, yorubá e outros dialetos pra ampliar minha compreensão dessas importantes referências culturais nossas que aos poucos vai sendo apagada. É muito bom saber da existência de educadores que se colocam nesse jogo da vida que é o de aprender sempre com o outro. Por isso que eu adoro a Janetinha.

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  2. "Possibilitar igualdade" é algo que só se consegue com uma educação verdadeiramente libertadora. Como há o que aprender. Além das línguas indígenas que nos fariam compreender melhor importantes referências culturais, gostaria imensamente de aprender a "ler" o que passa com aquele aluno alheio a tudo, com dificuldade extrema de aprender, com olhar vazio que te incomoda tanto. Sem referências, sem história, sem expectativas...sem sonhos. Procuro, sim, tia Lu amada aprender sempre, aprender com o outro, com tudo que a vida me traz.

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  3. Estou com uma classe de EJA, onde trabalhos em Módulos. Módulo I para que nunca frequentou a escola, Mód. II para quer já tem um pouco de conhecimento na escrita formal e Mód. III é preparação para dar continuidade aos estudos na "5ª série". Na minha opinião tal decisão da Secretaria Municipal foi um reprocesso. É humanamento impossível o profeossor dar atenção suficiente para 25 a 30 alunos com níveis totalmente diferentes de aprendizagem.

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